A cena foi transmitida ao vivo. O repórter da Band, Lucas Martins, empurra a colega da Record, Grace Abdou, enquanto ela tenta ouvir uma fonte. Um gesto brusco, desnecessário, violento. O vídeo rodou o país, gerou indignação nas redes, nota de repúdio da emissora, boletim de ocorrência. Mas o que poucos estão dizendo com todas as letras é que aquilo não foi só um empurrão, foi uma forma de silenciamento. E ainda mais grave: foi um homem, experiente, empurrando uma mulher, ao vivo, diante de todos.
Muita gente tenta justificar. Dizem que era pressão, que é “coisa do ao vivo”, que ele “perdeu a linha”. Mas eu quero fazer uma pergunta: se fosse um homem ali, ele teria empurrado com tanta facilidade? Teria usado o corpo para afastar alguém da mesma maneira?
A resposta, para mim, é clara: não.
Essa cena me doeu. Não só pela violência explícita, mas porque ela reativou uma memória que carrego comigo há anos. Eu tinha 22. Era estagiária em uma redação. Trabalhava duro, como toda jovem jornalista tentando se provar em meio a nomes consagrados. Um dia, sentada ao lado de três colegas homens, ouvi um repórter experiente, com mais de 40 anos e quase duas décadas de profissão falar ao telefone sobre uma empresa de laticínios. De repente, ele se vira para mim, e pergunta:
— Você toma leite? De qual marca você gosta?
Respondi, desconcertada:
— Tomo, não tenho preferência.
E então, diante dos colegas:
— O problema é que a Daiane tem namorado… senão eu dava um litro de leite pra ela…
Os colegas riram. Eu ri. Não porque achei graça. Ri pra escapar. Ri pra me defender. Por dentro, me senti bem humilhada. Pequena. Era o meu lugar de trabalho. E eu era só uma estagiária. Ele, um nome respeitado.
Por que conto isso agora? Porque o empurrão ao vivo não é um caso isolado. É só a parte visível de uma estrutura podre. A violência contra mulheres jornalistas acontece todos os dias, muitas vezes de forma sutil, quase imperceptível para quem não sente na pele. Às vezes é uma piada, uma mão que passa rápido demais, uma insinuação, uma disputa desigual de espaço. Às vezes é uma humilhação em público. Às vezes é um empurrão ao vivo.
E o que dói ainda mais é que, na maioria das vezes, ninguém faz nada. A gente aprende a rir, a engolir, a fingir que é “só brincadeira”. Porque somos estagiárias, novatas, mulheres. Porque eles são “veteranos”, “gente boa”, “têm tempo de casa”.
Mas não dá mais pra fingir. A violência contra mulheres jornalistas não é exceção, é parte de uma cultura. E toda vez que um homem usa o corpo ou a voz para calar uma colega, ele reafirma esse poder. E toda vez que outro homem ri junto, ele valida esse ciclo.
O caso de Grace Abdou escancarou o que muitas de nós vivemos no silêncio. Que bom que foi filmado. Que bom que gerou revolta. Mas que a revolta não pare por aqui.
Que essa cena sirva de alerta. Para as empresas, que precisam proteger suas jornalistas. Para os colegas, que precisam deixar de ser cúmplices. E para as mulheres, que precisam saber: você não está sozinha.